sexta-feira, 28 de maio de 2010

Todos diferentes, todos iguais

Transcrição (e tradução livre) do monólogo de um taxista londrino obrigado a desviar-se da sua rota habitual devido aos ensaios para o Trooping the Colour, desfile de beefeaters nas celebrações anuais do aniversário da Rainha :

Adoro desfiles militares, com a música e os soldados de fardas vermelhas a marcharem, mas a Família Real era fuzilá-los a todos, bando de inaladores de cocaína e de corruptos. Na Praça Vermelha puseram lá o Lenine e as pessoas esperam horas para ver o corpo, aqui ficam vinte minutos em frente ao Palácio de Buckingham e vão-se embora. Devia morrer alguém para isto animar. Podiam mesmo empalhar a Rainha Mãe e colocá-la numa praça da cidade, para aumentar o turismo.

domingo, 23 de maio de 2010

Passámos o fim-de-semana à deriva num tapete azul, de relvado em relvado. Uma jangada de dois metros por um e meio, com paragens na parte de trás da nossa casa e um pouco por todo o lado em Regent's Park. Ainda não tínhamos visitado o parque, por ficar do outro lado da cidade e por não faltarem espaços verdes mais perto de nós. Conhecia-o apenas das longas descrições nos livros da Virginia Woolf, com as quais nos podemos orientar por Londres melhor do que com o Google Maps ou o Via Michelin. Estivémos ao lado de uma jovem família muçulmana, de mulher totalmente coberta e marido vestido de forma ocidentalizada, e mais tarde ao lado de uma rapariga em biquini, quase topless. Por todo o lado famílias deitadas na relva e rapazes e raparigas a jogarem futebol, cricket ou rugby. Estivémos deitados no tapete azul, à sombra, e de vez em quando um dos miúdos aventurava-se no interminável e sereno aceano de relva.
Away from people—they must get away from people, he said (jumping up), right away over there, where there were chairs beneath a tree and the long slope of the park dipped like a length of green stuff with a ceiling cloth of blue and pink smoke high above, and there was a rampart of far irregular houses hazed in smoke, the traffic hummed in a circle, and on the right, dun-coloured animals stretched long necks over the Zoo palings, barking, howling. There they sat down under a tree.
"Look," she implored him, pointing at a little troop of boys carrying cricket stumps, and one shuffled, spun round on his heel and shuffled, as if he were acting a clown at the music hall.

Mrs Dalloway, Virginia Woolf (Septimus e Lucrezia em Regent's Park)

segunda-feira, 17 de maio de 2010

Lembro-me de o A. dizer que há uma certa estranheza quando os jogadores de futebol começam a ser mais novos do que nós. Estamos a atingir uma fase de transição semelhante, quando os governantes são quase da nossa idade. O novo Primeiro-Ministro britânico tem apenas mais sete anos do que eu e o Ministro das Finanças apenas mais dois. Ou seja, o homem que vai tentar cortar seis mil milhões de libras de despesa pública já este ano poderia, num cenário não totalmente inconcebível, ter andado na escola comigo. Não somos nós que estamos a ficar muito velhos, mas os políticos a atingirem posições elevadas demasiado cedo, consequência de uma cultura que privilegia a juventude. Apesar de a mudança em si não ser positiva ou negativa, teria algum pudor em entregar os meus impostos a quem provavelmente participou em moches ao som dos The Clash ou dos Ramones há menos de duas décadas ou que de forma intuitiva esteja sempre à espera de que após quatro ou cinco músicas animadas comece a tocar um slow.
Comprei na Feira do Livro Uma Viagem Sentimental de Laurence Sterne (1713-1768), apenas por ter na contracapa este excerto:

Os ociosos que deixam o país natal vão para o estrangeiro por alguma razão ou razões que se podem derivar de uma destas causas gerais -

Enfermidade do corpo,

Imbecilidade do espírito, ou

Necessidade inevitável.

Será suficiente para o meu leitor, se é que ele próprio já se viu na qualidade de viajante, que ele possa, com o devido estudo e reflexão sobre o assunto, determinar a sua própria posição e categoria no catálogo.

Saber que posso restringir a razão do meu exílio a apenas três causas dá-me algum conforto e embora ainda tenha de ler o resto do livro para tentar determinar a causa geral do meu exílio, intuo já que tenha sido uma perfeita conjugação das duas últimas.

terça-feira, 11 de maio de 2010

Inventário abreviado (e muito atrasado) de um fim-de-semana prolongado em Paris: uma viagem de Eurostar (ida e volta), dois crepes com nutella, uma sopa de cebola e queijo gratinado, dois passeios de barco, um exposição do Lucian Freud no Pompidou, duas brancas de neve, três viagens de carrossel, três pequenos-almoços completos na companhia de quatro bons amigos.

domingo, 9 de maio de 2010

Participei hoje na cerimónia de comemoração do Dia da Europa, na Abadia de Westminster. Em termos de missas, sou mais ou menos como o Obélix e a poção mágica dos gauleses, caí num caldeirão quando era mais novo e agora sinto necessidade de as manter ao mínimo. Mas o edifício e a coreografia da cerimónia não me deixaram indiferentes. Num espaço onde foram coroados muitos reis, houve leituras de epístolas em alemão, romeno e francês, um coro búlgaro, muitos salmos ingleses e crianças de diversas nacionalidades europeias. Depois ainda estive na Jerusalem Chamber, onde, segundo me disseram, morreu Henrique IV, que tinha projectos de viajar até à Terra Santa mas teve de contentar-se por cumprir o seu destino muito mais perto de casa. No final, regressei numa carruagem de metro quase vazia, de fato de gravata, a ouvir Sonic Youth (Kotton Krown): I'm wasted in time and I'm looking everywhere / I don't care where / Angels are dreaming of you.

quarta-feira, 5 de maio de 2010

Recebi há tempos pelo correio um livro com o título: Opening for White According to Kramnik. Como leitor de Borges, um título assim não me poderia deixar indiferente, independentemente do conteúdo do livro. É, como é óbvio, sobre xadrez e talvez aconselhe formas de se ultrapassar o dilema do jogador perante o jogo em branco. Como não sei mais do que a forma como cada peça se deve mover no tabuleiro, é também óbvio que o livro não é para mim. Em breve será entregue a quem sabe quem é o Kramnik e está mais interessado do que eu em conhecer a sua abertura com as brancas. Depois restará apenas na minha cabeça a frase Opening for white according to Kramnik, Opening for white according to Kramnik..., incompreensível e musical, a sugerir sacrifícios de peões e movimentos enviesados de cavalos.