terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Just like Sister Ray says...

Numa cidade com a dimensão de Londres, sem um centro muito definido, cada habitante tem de ir construindo a sua carta de navegação pessoal. Existem muitas livrarias, por exemplo, mas só aos poucos conseguimos ir localizando as melhores, em locais muito diferentes da cidade. Em termos musicais, a desilusão e o desafio são equivalentes. As lojas de música estão a desaparecer. O abastecimento é garantido por um conjunto muito disperso e reduzido de espaços independentes. A Rough Trade tem duas bases, nas zonas leste e oeste da cidade, junto aos pontos nevrálgicos de Brick Lane e de Portobello Road. Na Berwick Street, em pleno Soho, com um nome que evoca uma canção dos Velvet Underground - de que os Joy Division fizeram uma versão melhorada -, fica a Sister Ray. É um espaço escuro e despretensioso, com filas e filas de capas de CDs e de LPs de vinyl. Ao contrário das grandes cadeias de lojas, funciona quase como uma máquina do tempo, com muitas novidades mas também álbuns de bandas já desaparecidas ou perpétuas. A secção de pós-punk é, enfim, demasiado extensa para apenas uma hora de almoço. Comprei um pouco de Siouxsie and the Banshees, The Fall e Sonic Youth. Depois, de fato e gravata, caminhei pelas ruas sujas do Soho com a letra repetitiva da canção na cabeça: «Had a good night, had a good night, just like Sister Ray says...»


segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

Hora de almoço

Passei a hora de almoço na National Portrait Gallery. Numa pequena parede do primeiro andar estão  expostos de modo temporário os estudos que ajudaram Patrick Heron a pintar o retrato de T.S. Eliot. Num deles, talvez o mais interessante, Eliot está sentado num cadeirão vermelho. Devido a um racionamento energético do final da década de 1940, envergava um pesado e escuro sobretudo. O estudo terá sido pintado de memória, na casa de Heron, na Addison Avenue, a duas ou três ruas de onde eu próprio moro. Eliot também morou relativamente perto. Quando saí, já tinha começado a chover. Gastei o resto da hora de almoço, como Prufrock, a caminhar pelas ruas que se prolongam como um argumento enfadonho até ao trabalho.
 T.S. Eliot, Patrick Heron, 1949

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

Anotações para um livro de estilo

Mr Speaker Order. I apologise for interrupting. Members must calm themselves. Mr Byles, I thought you were normally a model of restraint and civility. Good heavens man! I do not know what has come over you. Calm yourself – take a pill if necessary, but keep calm. Take up yoga!
Câmara dos Comuns, 5 de Dezembro de 2012

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

O general inverno chegou, mas foi rapidamente derrotado. Três dias de neve, seguidos por três dias de degelo. Para trás ficaram apenas um frio escuro e profundo, bonecos de neve desfigurados a vaguear pelos parques.

É difícil saber o que leva um adulto, na posse de quase todas as suas faculdades mentais, a aceitar um convite para jogar futebol quando as temperaturas oscilam entre o positivo e o negativo. Em especial quando o convite parte de amigos ucranianos, muito mais preparados para os rigores e as tácticas do futebol de inverno. O termómetro do carro marcava 0,5º C quando entrei em campo, com luvas, várias camadas de roupa e mais entusiasmo que talento. O resto pertence à história e estatística do futebol.

domingo, 6 de janeiro de 2013

Os objectos principais (2)

A memória biográfica perdura nos objectos. Já depois de ter escrito o texto anterior, encontrei na parte lateral da mala uma etiqueta com informações sobre o proprietário original e a sua viagem marítima:

MR. P.G. ADLARD
"ATHLONE CASTLE" 28/5/65
LOADING AT CAPETOWN
DESTINATION SOUTHAMPTON
REMARKS This package failed to accompany Mr. Adlard when he sailed in "Pendennis Castle" 21/5/65 from Capetown as it had not arrived.
ADDRESS: - 42 Langworth Gate. Lincoln.

Uma breve investigação na internet permitiu-me perceber que a mala terá pertencido a um botânico de Oxford com uma extensa obra publicada sobre o crescimento de árvores, parte da qual baseada em trabalho de campo realizado em África. Embora de circulação restrita, ainda é possível encontrar à venda artigos, sem dúvida interessantes, como  Wood Density Variation in Plantation-Grown Pinus Patula from the Viphya Plateau, Malawi ou Growth and Growing Space. Em 1965, Adlard estaria provavelmente a regressar de mais uma expedição científica com espécies botânicas e cadernos de anotações na mala que agora alberga carrinhos de brincar. Encontrei também o que seria de esperar, um obituário: PHILIP GEWASE ADLARD, 28 December 2006. Aged 80. Em apenas seis anos, os seus objectos pessoais acabaram no mercado de Camden, de forma transitória, para posterior dispersão e diluição da memória biográfica.

quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

Os objectos principais

Quando alguém morre, os objectos pessoais são habitualmente repartidos pelos familiares mais próximos. Depois, quando estes morrem também, os objectos são passados para outros familiares, de forma sucessiva. No momento em que essa cadeia de transmissão é quebrada, por falta de descendentes ou de interesse, os objectos acabam à venda em mercados como o de Camden. Fotografias de casamento, postais de férias, roupas, livros com dedicatória. Numa das minhas visitas ao mercado encontrei uma velha mala com aspecto de ter feito no passado muitas viagens marítimas, repleta de inscrições e etiquetas: Hull, Beira, Pendennis Castle, Southampton, Central Hôtel Lourenço Marques. Este última etiqueta despertou-me o interesse. Disse à vendedora, Foi a cidade em que nasci. Acabámos por perceber que éramos ambos portugueses, ela chegada há muitas décadas a Londres. Comprei a mala. Está agora em doca seca, na nossa sala, a servir de casa para a já vasta coleção de carrinhos do D.

quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

No animals were harmed in the making of this text

Com os anos, a acumulação de mortes cinematográficas torna-nos resistentes às imagens mais violentas. Num século de cinema, nenhuma forma de morte humana deixou de ser recriada, mas sempre de modo ficcional. Os animais não tiveram a mesma sorte. Não há filme que me tenha aproximado mais do vegetarianismo do que Num Ano de Treze Luas (1978) de Fassbinder, no qual Elvira profere um longo monólogo enquanto caminha por um matadouro. As vacas são abatidas em directo de forma sequencial e mecanizada por funcionários abstraídos da extrema violência dos seus actos. Na verdade, o sacrifício de bovinos tem uma longa tradição na história do cinema. No final de Greve (1925) de Eisenstein, as imagens do abate real de uma vaca são intercaladas de modo simbólico com as da carga policial sobre os operários em greve. Desaconselho vivamente qualquer dos filmes a quem (como eu) prefira as suas vacas em forma de bitoque.

terça-feira, 1 de janeiro de 2013

Em certas situações, a sociedade funciona por turnos. Como são mais os que, na passagem de ano, fazem o turno da noite, a manhã do dia seguinte é de uma gloriosa calma pós-apocalíptica, sem ruído ou pessoas nas ruas. Aos poucos, os sobreviventes começam a sair de casa para aproveitar as potencialidades de uma cidade menos habitada - ressentidos também com os que acabam de deitar-se. Nós, cinco sobreviventes, percorremos as ruas junto ao rio até à Tate Britain, sem qualquer trânsito, para ver a exposição dos Pré-Rafaelitas. Em seis ou sete salas vimos as pinturas mais representativas do movimento artístico inglês, com uma das crianças no carrinho, outra ao colo e a terceira pela mão a fazer perguntas sobre as cenas representadas nos quadros. É difícil dizer a uma criança, por exemplo, que a Ophelia de John Everett Millais não está a nadar de costas num rio, totalmente vestida, mas que se afogou; ou que o Chatterton de Henri Wallis está a dormir um sono menos que eterno. Regressámos a casa cedo, mas com o sol já a baixar por detrás das quatro torres da estação de Battersea.

Auto-retrato com relógio (Londres, ano 4)


O espelho

Na sequência inicial d'O Espelho (1975) de Tarkovsky, uma terapeuta - investida de autoridade simbólica por uma bata branca e um mau penteado - aplica um conjunto de técnicas agressivas de hipnose para curar um rapaz dos seus problemas na fala. Tenho dúvidas de que a mudez que atingiu este blogue ao longo dos últimos meses possa ser tratada com o mesmo tipo de exercícios. Em todo o caso, vou concentrar toda a minha força de vontade nas mãos abertas, como é instruído a fazer o rapaz do filme, para ver se as palavras fluem com maior facilidade ao longo de 2013. Não é uma promessa, apenas a descrição da terapêutica.