Numa passagem rápida por uma livraria, com o P. a dormir no carrinho de bebé, encontrei um livro com um título e um subtítulo muito sugestivos: Atlas of Remote Islands: Fifty Islands I Have Not Visited and Never Will. Uma nota biográfica refere que a autora cresceu no lado errado do Muro de Berlim e, impedida de viajar, conheceu o mundo através de atlas geográficos de uma biblioteca familiar. O livro descreve em pormenor as características de ilhas longínquas, muitas delas desabitadas, áridas, batidas por ventos polares, baptizadas com os estados de espírito dos marinheiros que primeiro as encontraram: decepção, possessão, antípodas, solidão. O livro começa precisamente com essa última ilha solitária do Árctico, Lonely Island. Não sei como acaba, porque entretanto o P. acordou.
quarta-feira, 31 de julho de 2013
Atlas de ilhas distantes
Numa passagem rápida por uma livraria, com o P. a dormir no carrinho de bebé, encontrei um livro com um título e um subtítulo muito sugestivos: Atlas of Remote Islands: Fifty Islands I Have Not Visited and Never Will. Uma nota biográfica refere que a autora cresceu no lado errado do Muro de Berlim e, impedida de viajar, conheceu o mundo através de atlas geográficos de uma biblioteca familiar. O livro descreve em pormenor as características de ilhas longínquas, muitas delas desabitadas, áridas, batidas por ventos polares, baptizadas com os estados de espírito dos marinheiros que primeiro as encontraram: decepção, possessão, antípodas, solidão. O livro começa precisamente com essa última ilha solitária do Árctico, Lonely Island. Não sei como acaba, porque entretanto o P. acordou.
terça-feira, 30 de julho de 2013
Banda sonora para uma remodelação governamental
Peter, Paul and Mary, Where have all the flowers gone. A escolha da canção é pouco importante. Ainda hesitei entre opções mais positivas (Don't think twice, it's all right) e mais negativas (Too much of nothing).
segunda-feira, 29 de julho de 2013
London, London 2
Um dia, quando vinha a sair de uma reunião num ministério britânico - desconfortável de fato e gravata, como sempre - um grupo de três turistas asiáticas com conhecimentos muito rudimentares da língua inglesa aproximou-se de mim apontando para uma máquina fotográfica. De forma simpática, acedi logo a tirar-lhes uma foto de grupo. No entanto, o que elas pretendiam - tentaram explicar-me enquanto eu estendia o braço para a máquina - era tirar uma fotografia comigo. Embora sem perceber muito bem o que estava a acontecer, concordei. Tenho a sensação de que ficarei para sempre no álbum de férias das simpáticas turistas catalogado como «um verdadeiro inglês», provavelmente na página seguinte a fotos com poses semelhantes tiradas ao lado de um dos tradicionais elementos da guarda de Buckingham ou da estátua de cera da Rainha.
London, London
No romance England, England, Julian Barnes imagina a transformação da ilha de Wight num gigantesco parque temático, construído com o objectivo de reproduzir a própria Inglaterra. Pagando o bilhete, os turistas podem visitar réplicas dos principais monumentos e ter acesso a alguns dos símbolos e ambientes que caracterizam a identidade nacional. Para os visitantes, a ideia de Inglaterra acaba por tornar-se mais real no parque, onde tudo é perfeito e os objectos são coincidentes com a imagem prévia com que partiram de casa, do que no próprio país.
Ao passar pela Abadia de Westminster, a caminho de uma reunião, e depois pelo Palácio de Buckingham, no regresso, navegando sempre por entre as correntes compactas de turistas, confirmei a ideia de que, longe do território da ficção, também a cidade de Londres tem vindo a transformar-se num parque temático de si própria, com membros da realeza aprisionados nas personagens que lhes criaram e a organização de eventos especiais quase todos os anos: casamento real, jogos olímpicos, bodas de diamante da rainha, nascimento real. Como me acontece com frequência, também aqui sou apenas mais um figurante, não remunerado e discreto, que caminha pelos parques de regresso ao trabalho.
Ao passar pela Abadia de Westminster, a caminho de uma reunião, e depois pelo Palácio de Buckingham, no regresso, navegando sempre por entre as correntes compactas de turistas, confirmei a ideia de que, longe do território da ficção, também a cidade de Londres tem vindo a transformar-se num parque temático de si própria, com membros da realeza aprisionados nas personagens que lhes criaram e a organização de eventos especiais quase todos os anos: casamento real, jogos olímpicos, bodas de diamante da rainha, nascimento real. Como me acontece com frequência, também aqui sou apenas mais um figurante, não remunerado e discreto, que caminha pelos parques de regresso ao trabalho.
quarta-feira, 5 de junho de 2013
Meninos de coro
Foi provavelmente a primeira vez que os Dead Combo actuaram numa igreja. A Round Chapel, em Hackney, estava cheia de fiéis na passada sexta-feira, para ouvir o som distorcido de guitarras e contrabaixo. Projectadas nas paredes e sobre o órgão de tubos, imagens difusas de rostos, figuras diabólicas e strippers a rodar em torno de varões.
segunda-feira, 3 de junho de 2013
On being sane in insane places
Em 1973, oito pessoas mentalmente sãs tentaram ser internadas em hospitais psiquiátricos, no âmbito de uma experiência científica preparada por David Rosenhan. Todos os pacientes acabaram por ter alta, mas só após um período relativamente prolongado de internamento e de terem concordado em continuar a tomar a medicação prescrita.
Durante a passagem pelas instituições, muitos dos comportamentos dos voluntários eram interpretados pelo pessoal clínico à luz da enfermidade diagnosticada. Alguns dos pacientes, por exemplo, tiravam regularmente notas sobre a experiência. Numa das fichas clínicas, alguém anotou: «Patient engages in writing behaviour» – um bem conhecido indício de insanidade.
Uma segunda experiência foi depois montada quando a direcção de um outro hospital, irritada com os resultados do estudo, desafiou a equipa de Rosenhan a enviar pacientes incógnitos para a sua própria instituição, de modo a poder confirmar a eficácia dos diagnósticos da sua equipa na distinção entre falsos e verdadeiros doentes. Com efeito, o pessoal médico foi capaz de identificar mais de quarenta fraudes entre os quase duzentos pacientes da instituição. Mas Rosenhan não tinha enviado qualquer voluntário incógnito.
A experiência é referida muitas vezes como exemplo dos limites fluidos entre os estados de sanidade e de insanidade. Mas mais do que os dados empíricos, gosto do título que foi dado ao estudo, On being sane in insane places, uma frase que me vem à cabeça com frequência no dia a dia, por vezes mesmo com os termos invertidos, acompanhada por uma pergunta: «quanto mais tempo até ter alta?»
Durante a passagem pelas instituições, muitos dos comportamentos dos voluntários eram interpretados pelo pessoal clínico à luz da enfermidade diagnosticada. Alguns dos pacientes, por exemplo, tiravam regularmente notas sobre a experiência. Numa das fichas clínicas, alguém anotou: «Patient engages in writing behaviour» – um bem conhecido indício de insanidade.
Uma segunda experiência foi depois montada quando a direcção de um outro hospital, irritada com os resultados do estudo, desafiou a equipa de Rosenhan a enviar pacientes incógnitos para a sua própria instituição, de modo a poder confirmar a eficácia dos diagnósticos da sua equipa na distinção entre falsos e verdadeiros doentes. Com efeito, o pessoal médico foi capaz de identificar mais de quarenta fraudes entre os quase duzentos pacientes da instituição. Mas Rosenhan não tinha enviado qualquer voluntário incógnito.
A experiência é referida muitas vezes como exemplo dos limites fluidos entre os estados de sanidade e de insanidade. Mas mais do que os dados empíricos, gosto do título que foi dado ao estudo, On being sane in insane places, uma frase que me vem à cabeça com frequência no dia a dia, por vezes mesmo com os termos invertidos, acompanhada por uma pergunta: «quanto mais tempo até ter alta?»
quarta-feira, 13 de março de 2013
Percebi hoje que, devido à necessidade de conciliar os interesses de uma família alargada, aluguei dois filmes muito diferentes, mas com títulos semelhantes: Tokyo Story (Yasujiro Ozu, 1953) e Toy Story (John Lasseter, 1995). Na verdade, ambas as histórias têm um tema comum: o medo de um calmo abandono por parte de quem já nos foi próximo, no contexto do processo natural de crescimento. O facto de o dilema de centrar em bonecos articulados ou em pais envelhecidos pode ser considerado um aspecto secundário.
domingo, 3 de fevereiro de 2013
Assobiar para o ar
Já o encontrei duas ou três vezes em corredores de estações de metro. Ouvi agora uma reportagem na rádio sobre a vida subterrânea deste cego que assobia. Numa actividade que vive das contribuições voluntárias de quem passa, a diferenciação do produto é um factor de competitividade. Tendo chegado tarde à vida de pedinte, sem saber cantar ou tocar qualquer instrumento musical, começou a desenvolver uma técnica pessoal de assobio, cujo resultado ecoa agora por corredores labirínticos e frios. Parece ter também assumido uma atitude quase antropológica, procurando construir narrativas de vida a partir das frases soltas de quem passa apressado ou lento por King's Cross ou Holborn. Anos de trabalho de campo permitiram-lhe, assim, ir adaptando um extenso repertório a cada local ou fase do dia. Clássicos do pop/rock britânico de manhã, quando os viajantes se encaminham apressados para os empregos, improvisações de jazz ao final da tarde. Na estação de St. Paul's, com a proximidade da catedral, é frequente assobiar hinos religiosos de compositores ingleses ou Bach. Por vezes, numa espécie de equivalência, nem o chego a ver. O som propaga-se simplesmente por corredores laterais, encruzilhadas, vãos de escadas rolantes sem que eu tenha tempo ou disposição para procurar a sua origem.
terça-feira, 29 de janeiro de 2013
Just like Sister Ray says...
Numa cidade com a dimensão de Londres, sem um centro muito definido, cada habitante tem de ir construindo a sua carta de navegação pessoal. Existem muitas livrarias, por exemplo, mas só aos poucos conseguimos ir localizando as melhores, em locais muito diferentes da cidade. Em termos musicais, a desilusão e o desafio são equivalentes. As lojas de música estão a desaparecer. O abastecimento é garantido por um conjunto muito disperso e reduzido de espaços independentes. A Rough Trade tem duas bases, nas zonas leste e oeste da cidade, junto aos pontos nevrálgicos de Brick Lane e de Portobello Road. Na Berwick Street, em pleno Soho, com um nome que evoca uma canção dos Velvet Underground - de que os Joy Division fizeram uma versão melhorada -, fica a Sister Ray. É um espaço escuro e despretensioso, com filas e filas de capas de CDs e de LPs de vinyl. Ao contrário das grandes cadeias de lojas, funciona quase como uma máquina do tempo, com muitas novidades mas também álbuns de bandas já desaparecidas ou perpétuas. A secção de pós-punk é, enfim, demasiado extensa para apenas uma hora de almoço. Comprei um pouco de Siouxsie and the Banshees, The Fall e Sonic Youth. Depois, de fato e gravata, caminhei pelas ruas sujas do Soho com a letra repetitiva da canção na cabeça: «Had a good night, had a good night, just like Sister Ray says...»
segunda-feira, 28 de janeiro de 2013
Hora de almoço
Passei a hora de almoço na National Portrait Gallery. Numa pequena parede do primeiro andar estão expostos de modo temporário os estudos que ajudaram Patrick Heron a pintar o retrato de T.S. Eliot. Num deles, talvez o mais interessante, Eliot está sentado num cadeirão vermelho. Devido a um racionamento energético do final da década de 1940, envergava um pesado e escuro sobretudo. O estudo terá sido pintado de memória, na casa de Heron, na Addison Avenue, a duas ou três ruas de onde eu próprio moro. Eliot também morou relativamente perto. Quando saí, já tinha começado a chover. Gastei o resto da hora de almoço, como Prufrock, a caminhar pelas ruas que se prolongam como um argumento enfadonho até ao trabalho.
T.S. Eliot, Patrick Heron, 1949
sexta-feira, 25 de janeiro de 2013
Anotações para um livro de estilo
Mr Speaker Order. I apologise for interrupting. Members must calm themselves. Mr Byles, I thought you were normally a model of restraint and civility. Good heavens man! I do not know what has come over you. Calm yourself – take a pill if necessary, but keep calm. Take up yoga!
Câmara dos Comuns, 5 de Dezembro de 2012
quinta-feira, 24 de janeiro de 2013
quarta-feira, 23 de janeiro de 2013
É difícil saber o que leva um adulto, na posse de quase todas as suas faculdades mentais, a aceitar um convite para jogar futebol quando as temperaturas oscilam entre o positivo e o negativo. Em especial quando o convite parte de amigos ucranianos, muito mais preparados para os rigores e as tácticas do futebol de inverno. O termómetro do carro marcava 0,5º C quando entrei em campo, com luvas, várias camadas de roupa e mais entusiasmo que talento. O resto pertence à história e estatística do futebol.
domingo, 6 de janeiro de 2013
Os objectos principais (2)
A memória biográfica perdura nos objectos. Já depois de ter escrito o texto anterior, encontrei na parte lateral da mala uma etiqueta com informações sobre o proprietário original e a sua viagem marítima:
MR. P.G. ADLARD
"ATHLONE CASTLE" 28/5/65
LOADING AT CAPETOWN
DESTINATION SOUTHAMPTON
REMARKS This package failed to accompany Mr. Adlard when he sailed in "Pendennis Castle" 21/5/65 from Capetown as it had not arrived.
ADDRESS: - 42 Langworth Gate. Lincoln.
Uma breve investigação na internet permitiu-me perceber que a mala terá pertencido a um botânico de Oxford com uma extensa obra publicada sobre o crescimento de árvores, parte da qual baseada em trabalho de campo realizado em África. Embora de circulação restrita, ainda é possível encontrar à venda artigos, sem dúvida interessantes, como Wood Density Variation in Plantation-Grown Pinus Patula from the Viphya Plateau, Malawi ou Growth and Growing Space. Em 1965, Adlard estaria provavelmente a regressar de mais uma expedição científica com espécies botânicas e cadernos de anotações na mala que agora alberga carrinhos de brincar. Encontrei também o que seria de esperar, um obituário: PHILIP GEWASE ADLARD, 28 December 2006. Aged 80. Em apenas seis anos, os seus objectos pessoais acabaram no mercado de Camden, de forma transitória, para posterior dispersão e diluição da memória biográfica.
MR. P.G. ADLARD
"ATHLONE CASTLE" 28/5/65
LOADING AT CAPETOWN
DESTINATION SOUTHAMPTON
REMARKS This package failed to accompany Mr. Adlard when he sailed in "Pendennis Castle" 21/5/65 from Capetown as it had not arrived.
ADDRESS: - 42 Langworth Gate. Lincoln.
Uma breve investigação na internet permitiu-me perceber que a mala terá pertencido a um botânico de Oxford com uma extensa obra publicada sobre o crescimento de árvores, parte da qual baseada em trabalho de campo realizado em África. Embora de circulação restrita, ainda é possível encontrar à venda artigos, sem dúvida interessantes, como Wood Density Variation in Plantation-Grown Pinus Patula from the Viphya Plateau, Malawi ou Growth and Growing Space. Em 1965, Adlard estaria provavelmente a regressar de mais uma expedição científica com espécies botânicas e cadernos de anotações na mala que agora alberga carrinhos de brincar. Encontrei também o que seria de esperar, um obituário: PHILIP GEWASE ADLARD, 28 December 2006. Aged 80. Em apenas seis anos, os seus objectos pessoais acabaram no mercado de Camden, de forma transitória, para posterior dispersão e diluição da memória biográfica.
quinta-feira, 3 de janeiro de 2013
Os objectos principais
Quando alguém morre, os objectos pessoais são habitualmente repartidos pelos familiares mais próximos. Depois, quando estes morrem também, os objectos são passados para outros familiares, de forma sucessiva. No momento em que essa cadeia de transmissão é quebrada, por falta de descendentes ou de interesse, os objectos acabam à venda em mercados como o de Camden. Fotografias de casamento, postais de férias, roupas, livros com dedicatória. Numa das minhas visitas ao mercado encontrei uma velha mala com aspecto de ter feito no passado muitas viagens marítimas, repleta de inscrições e etiquetas: Hull, Beira, Pendennis Castle, Southampton, Central Hôtel Lourenço Marques. Este última etiqueta despertou-me o interesse. Disse à vendedora, Foi a cidade em que nasci. Acabámos por perceber que éramos ambos portugueses, ela chegada há muitas décadas a Londres. Comprei a mala. Está agora em doca seca, na nossa sala, a servir de casa para a já vasta coleção de carrinhos do D.
quarta-feira, 2 de janeiro de 2013
No animals were harmed in the making of this text
Com os anos, a acumulação de mortes cinematográficas torna-nos resistentes às imagens mais violentas. Num século de cinema, nenhuma forma de morte humana deixou de ser recriada, mas sempre de modo ficcional. Os animais não tiveram a mesma sorte. Não há filme que me tenha aproximado mais do vegetarianismo do que Num Ano de Treze Luas (1978) de Fassbinder, no qual Elvira profere um longo monólogo enquanto caminha por um matadouro. As vacas são abatidas em directo de forma sequencial e mecanizada por funcionários abstraídos da extrema violência dos seus actos. Na verdade, o sacrifício de bovinos tem uma longa tradição na história do cinema. No final de Greve (1925) de Eisenstein, as imagens do abate real de uma vaca são intercaladas de modo simbólico com as da carga policial sobre os operários em greve. Desaconselho vivamente qualquer dos filmes a quem (como eu) prefira as suas vacas em forma de bitoque.
terça-feira, 1 de janeiro de 2013
Em certas situações, a sociedade funciona por turnos. Como são mais os que, na passagem de ano, fazem o turno da noite, a manhã do dia seguinte é de uma gloriosa calma pós-apocalíptica, sem ruído ou pessoas nas ruas. Aos poucos, os sobreviventes começam a sair de casa para aproveitar as potencialidades de uma cidade menos habitada - ressentidos também com os que acabam de deitar-se. Nós, cinco sobreviventes, percorremos as ruas junto ao rio até à Tate Britain, sem qualquer trânsito, para ver a exposição dos Pré-Rafaelitas. Em seis ou sete salas vimos as pinturas mais representativas do movimento artístico inglês, com uma das crianças no carrinho, outra ao colo e a terceira pela mão a fazer perguntas sobre as cenas representadas nos quadros. É difícil dizer a uma criança, por exemplo, que a Ophelia de John Everett Millais não está a nadar de costas num rio, totalmente vestida, mas que se afogou; ou que o Chatterton de Henri Wallis está a dormir um sono menos que eterno. Regressámos a casa cedo, mas com o sol já a baixar por detrás das quatro torres da estação de Battersea.
O espelho
Na sequência inicial d'O Espelho (1975) de Tarkovsky, uma terapeuta - investida de autoridade simbólica por uma bata branca e um mau penteado - aplica um conjunto de técnicas agressivas de hipnose para curar um rapaz dos seus problemas na fala. Tenho dúvidas de que a mudez que atingiu este blogue ao longo dos últimos meses possa ser tratada com o mesmo tipo de exercícios. Em todo o caso, vou concentrar toda a minha força de vontade nas mãos abertas, como é instruído a fazer o rapaz do filme, para ver se as palavras fluem com maior facilidade ao longo de 2013. Não é uma promessa, apenas a descrição da terapêutica.
sexta-feira, 13 de abril de 2012
The Robben Island Bible
No final dos anos 70, os prisioneiros políticos do ANC circularam entre si uma edição das obras completas de Shakespeare, disfarçada de livro religioso hindu. Cada prisioneiro sublinhou a sua parte favorita e assinou à margem. Nelson Mandela escolheu uma passagem de Julius Cesar, Walter Sisulu de The Merchant of Venice, Govan Mbeki de Twelfth Night. Trinta e duas pessoas assinaram o livro que se tornou conhecido como The Robben Island Bible. O acto subversivo de ler Shakespeare nas celas de uma prisão sul-africana passou felizmente impune. Num passeio por uma das ruas transversais de Portobello Road encontrei também eu uma edição antiga das obras completas. Paguei 3 libras pelas 1080 páginas encadernadas com capa dura. Afastei-me com a sensação de ter acabado de roubar um bem precioso. Hoje sublinhei a mesma frase de The Tempest que Billy Nair nos anos 70: This island’s mine, by Sycorax my mother.
terça-feira, 31 de janeiro de 2012
Uma grande-pouca vergonha
O filme mais recente de Steve McQueen prova que não há fome que não dê em fartura. Foi bom rever a Carey Mulligan, depois da agradável surpresa de An Education. Num dos diálogos finais desse filme, a adolescente Mulligan diz à diretora da sua escola: «I suppose you think I’m a ruined woman». A resposta é curta: «You’re not a woman.» Parece que entretanto cresceu.
quinta-feira, 26 de janeiro de 2012
Após dois anos e meio em Londres começou a acontecer-me um fenómeno psicológico provavelmente muito comum: em muitas situações, a voz com que penso fala em inglês. Como a minha pronúncia não é perfeita – nunca será, por muitas décadas que cá viva –, a minha consciência narra os seus dilemas quotidianos numa voz que fica a meio caminho entre o Jeremy Irons e o Manuel do Fawlty Towers. Umas vezes mais Manuel, outras mais reviver o passado em Brideshead. Em resumo, por vezes tenho dificuldade em compreender-me, o que não é nenhuma novidade.
sábado, 17 de dezembro de 2011
Arcadia, de Tom Stoppard, começa com um diálogo bastante divertido entre uma rapariga de treze anos e o seu preceptor privado, perito na arte de responder a perguntas difíceis e de manter crianças e adolescentes entretidos. Alguns exemplos:
Thomasina Septimus, what is carnal embrace?
Septimus Carnal embrace is the practice of throwing one’s arms around a side of beef.
Thomasina Is that all?
Septimus No … a soulder of mutton, a haunch of venison well hugged, an embrace of grouse … caro, carnis; feminine; flesh.
Thomasina Is it a sin?
Septimus No necessarily, my lady, but when carnal embrace is sinful it is a sin of the flesh, QED. […]
I thought you were finding a proof for Fermat’s last theorem.
Thomasina It is very difficult, Septimus. You will have to show me how.
Septimus If I knew how, there would be no need to ask you. Fermat’s last theorem has kept people busy for a hundred and fifty years, and I hoped it would keep you busy long enough for me to read Mr Chater’s poem in praise of love with only the distraction of its own absurdities.”
Thomasina Septimus, what is carnal embrace?
Septimus Carnal embrace is the practice of throwing one’s arms around a side of beef.
Thomasina Is that all?
Septimus No … a soulder of mutton, a haunch of venison well hugged, an embrace of grouse … caro, carnis; feminine; flesh.
Thomasina Is it a sin?
Septimus No necessarily, my lady, but when carnal embrace is sinful it is a sin of the flesh, QED. […]
I thought you were finding a proof for Fermat’s last theorem.
Thomasina It is very difficult, Septimus. You will have to show me how.
Septimus If I knew how, there would be no need to ask you. Fermat’s last theorem has kept people busy for a hundred and fifty years, and I hoped it would keep you busy long enough for me to read Mr Chater’s poem in praise of love with only the distraction of its own absurdities.”
Infelizmente, parece que já alguém conseguiu provar o último teorema de Fermat e por isso não posso usar o mesmo estratagema com os meus próprios filhos enquanto termino de ler a peça de Stoppard.
quarta-feira, 14 de dezembro de 2011
terça-feira, 13 de dezembro de 2011
segunda-feira, 12 de dezembro de 2011
sábado, 10 de dezembro de 2011
Eras geológicas
Numa das últimas idas a Lisboa trouxe de casa dos meus pais uma caixa de cartão onde, logo a partir da infância, fui acumulando pequenos objectos e pedaços de papel. Imperturbadas durante anos, as recordações foram-se dispondo em estratos geológicos muito bem definidos. É possível, como os geólogos fazem, datar com precisão acontecimentos e perceber o modo de vida de quem habitou esses lugares. Encontrei mapas de cidades que visitei, cartazes de festivais de música, bilhetes trocados em salas de aula, listas telefónicas com nomes de amigos que nunca mais vi, cromos com imagens de navios, bilhetes de comboio. Há um pedaço de papel que me intrigou mais do que os restantes. Estava numa das camadas geológicas da adolescência, com um número de telefone e a frase: atreve-te a não me telefonar. O problema é que já não faço a mínima ideia de quem o escreveu ou se cheguei a telefonar ou não. Calculo que, passados mais de vinte anos, já ninguém estará ao lado do telefone – como se fazia quando ainda não eram móveis – à espera de receber a chamada.
sexta-feira, 28 de outubro de 2011
A lista
De vez em quando a L. aparece no nosso quarto a meio da noite a dizer
que teve um sonho mau. Levo-a ensonada de volta para a cama dela e, enquanto a tapo, pede-me:
Pai, diz-me um sonho para sonhar. Escolhemos então em conjunto uma situação
mental agradável que a ajude a adormecer: fazer castelos de areia na praia, dar
mergulhos na piscina, brincar no parque com uma amiga, etc. Para poupar
trabalho e diversificar as opções, pediu-me ontem à tarde para escrevermos uma lista de sonhos. Peguei em papel e numa
caneta e comecei a escrever, sob orientação dela. A folha está agora pousada na
pequena mesa ao lado da cama dela, embora tenha dúvidas de que a consiga ler a
meio da noite, às escuras, com muito sono. Talvez no futuro, com o evoluir da
ciência, também nós consigamos retirar a aleatoriedade à projecção nocturna de
imagens.
terça-feira, 25 de outubro de 2011
A Housmans é uma pequena livraria em King’s Cross especializada em diversas correntes marxistas/anarquistas/pacifistas/ecologistas. Muitos dos autores não se falariam caso se encontrassem na rua, mas convivem pacificamente nas pequenas estantes de madeira. Para além das secções radicais e progressistas, tem livros de todos os géneros. Quando as condições meteorológicas o permitem, tem à porta uma pequena banca com livros baratos em segunda mão. Trouxe de lá hoje uma biografia de Leonard Woolf por uma libra. Numa das primeiras páginas surge esta citação: «I have always been greatly attracted to the undiluted female mind, as well as to the female body.» Dois sentimentos que partilho, embora não necessariamente pela mesma ordem ou com a mesma intensidade.
segunda-feira, 24 de outubro de 2011
domingo, 23 de outubro de 2011
Os nossos fantasmas
Num daqueles acasos borgeanos, encontrei num alfarrabista um livro sobre o grupo de artistas que, na segunda metade do século XIX, viveu na nossa rua e em outras circundantes: The Holland Park Circle. Faziam parte da pouco representativa classe dos artistas com muito dinheiro e muitos deles construíram de raiz as suas casas onde antes se pastavam vacas. Descobrimos que, antes de ter sido alterado e dividido em dez apartamentos, o prédio em que habitamos foi mandado construir por W. Graham Robertson, um dos artistas do grupo. O livro traz até uma planta da casa original. No andar de baixo, onde hoje mora uma família de três pessoas, ficava a Sala de Bilhar. A nossa sala, que na configuração inicial se estendia até ao andar de cima, era o atelier onde Robertson pintava. Aparentemente, levava uma vida de dandy. Teve uma actividade social tão intensa que não terá tido tempo para dar um maior contributo para a história da arte. Um dos amigos, John Singer Sargent, pintou-lhe um retrato, agora na posse da Tate. Nele, mostra um ar pálido e imberbe. É sempre bom conhecermos os nossos fantasmas.
W. Graham Robertson, John Singer Sargent, 1894.
quinta-feira, 20 de outubro de 2011
Livro de cabeceira para sem-abrigo
Em cima de uma cama de cartão, num dos túneis da estação de metro de Hyde Park Corner, estava hoje pousado The Magic of Reality, de Richard Dawkins, um dos melhores livros de cabeceira para sem-abrigo que tenho visto na rede londrina de transportes públicos.
domingo, 9 de outubro de 2011
Concílio
A L. chegou da escola com a notícia de que irá fazer de Maria na peça de Natal. A vida de actriz é difícil e, depois de nos dois anos anteriores ter feito de saco de moedas do Sr. Scrooge e de bailarina de caixa de música, pareceu-me bem, não fossem as questões teológicas que o anúncio provocou. Pai, o José é o pai do bebé? Pai, porque é que o anjo teve de dizer à Maria que ela estava grávida, o pai pôs a sementinha especial quando ela estava a dormir? Pai, quem é o pai do menino? Etc. Na impossibilidade de inscrevê-la num curso intensivo de catequese ou de reunir um concílio – e consciente de que algumas das interrogações provocaram no passado guerras religiosas, cisões, mortes na fogueira – tive de recorrer à estratégia mais eficaz: Vai perguntar à tua mãe. E de telefonar ao professor a sugerir um papel menos controverso para o próximo ano, como Petra von Kant ou a Menina Julia.
sábado, 10 de setembro de 2011
Em World’s End há um relógio com ponteiros que rodam na direcção contrária, com bastante velocidade. Podemos ficar parados do outro lado do passeio a ver o tempo andar para trás, com nostalgia ou horror, dependendo dos sentimentos com que encaramos o passado e o futuro. O relógio foi colocado na fachada da loja que pertence ainda a Vivienne Westwood, numa das diversas remodelações de um espaço que ajudou a nascer o movimento punk. Apesar de ser uma apenas uma coincidência geográfica, imagino que o relógio seja também objecto da inveja dos vizinhos do lado, no edifício azul que serve de sede ao Chelsea Conservative Club.
quarta-feira, 7 de setembro de 2011
O caçador solitário
A escolha dos livros é quase sempre ditada por motivos pouco racionais. Muitas vezes somos atraídos pelo título. Em outros casos, passa-se exactamente o contrário. The Heart is a Lonely Hunter (O Coração é um Caçador Solitário) da Carson McCullers é provavelmente o melhor livro com o pior título da história da literatura universal. Andei com ele na mão e dentro da mochila durante parte das férias, pousando-o sempre de capa para baixo, com uma vergonha de que me envergonho. Uma das personagens centrais do romance é um mudo chamado Singer. É um livro complexo, maduro, publicado quando McCullers tinha 23 anos. Saber isso irrita-me, com uma inveja de que me envergonho também.
O tratador de animais
No cruzamento para o Carvalhal existe uma barraca de madeira cheia de velharias. Enquanto vagueávamos por entre móveis baços e todo o tipo de objectos antigos, a L. e o D. davam festas ao gato do dono do negócio, um senhor simpático e sem um braço. Disse-nos que também gostava muito de bichos. Contou-nos mesmo que o seu trabalho anterior tinha sido como tratador de animais, até ao acidente o ter obrigado a voltar-se para as velharias. Apesar da curiosidade, não chegámos a perguntar-lhe se tinha sido um acidente no trabalho e de que tipo de animais tratava o homem agora sem um braço. Trouxemos connosco uma balança antiga de padaria e uma tina de latão. O banco de igreja, com sítios distintos para sentar e ajoelhar, não cabia na bagageira.
quinta-feira, 11 de agosto de 2011
Uma livraria no fim do mundo
É reconfortante saber que existe uma livraria no fim do mundo. Fui até lá hoje, na hora de almoço. A World’s End Bookshop fica numa das zonas menos movimentadas da King’s Road e é esp ecializada em livros em segunda mão. Tem livros um pouco por todo o lado: os mais valiosos protegidos no interior de estantes de vidro, os mais baratos em caixas esp alhadas pelo chão. Tem bastantes livros de poesia e de arte. Na primeira vez que inclinei a cabeça ligeiramente para a direita para ler as lombadas, descobri um livro sobre o grupo de artistas que habitou na zona em que vivo, no final do século XIX: The Holland Park Circle. Trouxe-o comigo debaixo do braço. Menos de cem metros a seguir existe uma loja esp ecializada na venda de cartazes originais de filmes antigos: coloridos, enormes, perfeitos para as paredes da minha casa, caros. Deixei-os ficar a todos no fim do mundo.
Nesta época de austeridade, aparentemente cortaram também uma estação do ano. Em Londres, passámos directamente da Primavera para o Outono. Até o mundo vegetal parece ter perdido as esp eranças de que o sol brilhe com a intensidade desejada. Chove intensamente e no jardim das traseiras da nossa casa as folhas de uma das árvores avançam já rapidamente para o cor-de-laranja. A chuva ajudou a acalmar os tumultos nas ruas da cidade. Os fogos foram extintos e o sentimento de recolher obrigatório vai lentamente sendo abandonado. No Sábado vou para sul, por três sem anas, à procura do Verão.
segunda-feira, 8 de agosto de 2011
No mês de Agosto os telefones não tocam, a caixa de entrada do correio electrónico vai recebendo mensagens de forma espaçada e sonolenta, não há passos apressados pelos corredores. As linhas-férreas e as auto-estradas levaram os habitantes das grandes cidades para lugares mais frescos junto às montanhas ou ao mar. Os poucos que ficaram a guardar a fortaleza entram num período de letargia ou dedicam-se a tarefas de arquivo, arrumação, catalogação. Em Londres já quase só os turistas andam pelas ruas e pelos parques. Há notícias de motins em algumas zonas da cidade, acontecimentos geralmente potenciados por um calor que este ano tarda em fazer-se sentir.
Fim-de-semana (2)
No Domingo à noite foi assistir ao concerto do Morrissey na Brixton Academy. A sala estava cheia de pessoas que obviamente o acompanham desde os anos 80, envergando t-shirts com o nome dele ou imagens retiradas dos álbuns dos The Smiths. Os que ainda têm cabelo suficiente para tal exibiam de forma discreta penteados semelhantes aos do cantor. Morrissey cantou músicas de várias fases da carreira e, nos intervalos, fez comentários depreciativos sobre diversos membros da Família Real. O público sabia de cor a letra de todas as canções e acompanhou-o de forma mais viva durante People are the same everywhere, Everyday is like Sunday e There’s a light that never goes out. Esta manhã, ao ler os jornais, apercebi-me de que, aparentemente, houve motins e pilhagens na rua por onde passei antes e depois do concerto. É uma daquelas situações em que quem está em casa a ver televisão sabe mais sobre os acontecimentos do que quem está no próprio local.
Fim-de-semana (1)
No Sábado fui até Twickenham assistir ao Inglaterra – País de Gales em Rugby. Apesar de ser um jogo amigável, o estádio estava completamente lotado. Para lá chegar tive de juntar-me aos milhares de pessoas que tentavam comprimir-se no interior das carruagens dos comboios que partiam do centro de Londres. Foi com alguma nostalgia que fiz o trajecto, recordando-me das inúmeras viagens que fiz em condições semelhantes na Linha de Sintra, nos anos 80 e 90. Em todo o lado, dois temas dominavam as conversas: (1) a quantidade de cerveja que já se tinha bebido e (2) a quantidade de cerveja que se planeava beber a seguir. O jogo, apesar de amigável, foi bastante animado. A Inglaterra venceu por 23 – 19.
sábado, 6 de agosto de 2011
sexta-feira, 1 de julho de 2011
Como o Verão inglês é tradicionalmente curto, assim que as temperaturas sobem acima dos 20ºC dá-se uma transferência frenética de actividades para o exterior, com mesas e cadeiras retiradas do fundo das arrecadações e garrafas de Pims alinhadas nos beirais das janelas. Só esta semana, a Rainha deu um Garden Party nos jardins do Palácio de Buckingham e os Arcade Fire deram a sua própria festa em Hyde Park. E posso garantir que os convidados dos Arcade Fire estavam, em geral, muito mais bem vestidos que os da Rainha. As festas particulares e de empresas também se multiplicam um pouco por toda a cidade, em jardins públicos ou privados. Os nossos vizinhos de baixo (um canadiano e uma mexicana) estão a organizar uma festa no relvado da parte de trás do prédio para amanhã ao fim da tarde, para a qual fomos convidados. Da nossa janela vejo um gato muito gordo e lento a mover-se por entre o mobiliário de jardim ainda semi-montado que ficará já esta noite no relvado.
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