terça-feira, 30 de março de 2010

You've got mail

No nosso prédio - como julgo que na generalidade do Reino Unido – o correio não é distribuído de forma individual. A correspondência é deixada, num maço, na caixa de correio do prédio e cada pessoa retira as cartas que lhe são dirigidas. A consequência não intencional deste método é ficarmos a conhecer os nomes de todos os vizinhos, assim como os seus gostos e personalidades.

Pode ficar a saber-se bastante sobre uma pessoa pelas revistas que assina, as cartas que recebe e o junk mail que lhe é endereçado. Ficamos a saber, por exemplo, que um vizinho aderiu a um ginásio, outro tem familiares na Austrália e um outro se interessa por ornitologia. A situação torna-nos também conscientes da necessidade de nos refrearmos na utilização do Royal Mail. Julgo que ninguém no prédio teria coragem de encomendar o catálogo de uma sex-shop ou de assinar a Penthouse.

Como só chegámos há relativamente pouco tempo, também só aos poucos vamos abandonando as nossas desconfianças. Como já referi antes, aderi a um serviço de dvds por correio. Noutra situação, teria sempre receio de que o filme fosse visto primeiro por todos os vizinhos e só depois colocado novamente na portaria. Mas isso nunca aconteceu. O envelope está sempre lá pousado, intacto à minha espera, embora sempre que pegue nele verifique se não tem uma anotação do género: «Gostei, mesmo não sendo um dos filmes mais interessantes do neo-realismo italiano. É pena ele morrer no final. Atenciosamente, 3.º G.»

quarta-feira, 24 de março de 2010

Quando Hamlet, Príncipe da Dinamarca, fica louco ou se finge de louco, é enviado para Inglaterra. A decisão, por si só, é já bastante reveladora. No entanto, é interessante ler também, na cena do cemitério, o diálogo entre Hamlet e um dos coveiros – que não sabe que está a falar com o Príncipe da Dinamarca –, sobre os motivos mais pormenorizados que justificaram o exílio:

Hamlet: Ay marry, why was he sent into England?
First clown: Why, because he was mad; he shall recover his wits there; or if he do not, it’s no great matter there.
Hamlet: Why?
First clown: ‘Twill not be seen in him there, there the men are as mad as he.

O facto de ter sido eu próprio a querer vir para Inglaterra apenas prova que os loucos têm momentos de lucidez, nos quais buscam a cura. Talvez volte recuperado ou nunca chegue a recuperar, mas entretanto parece que estou em boa companhia.

sábado, 20 de março de 2010

Hoje, pela segunda vez na vida, assisti a um filme em 3D. A primeira foi nos anos 80, quando fiquei a pé até mais tarde a ver O Monstro da Lagoa Negra na RTP. Eu e a minha irmã mais velha partilhámos o par de óculos de cartão que a minha mãe comprou na papelaria, mas não conseguímos ver absolutamente nada de extraordinário. Julgo que só tive um sentimento de anticlímax semelhante muitos anos mais tarde quando Portugal perdeu com a Grécia na final do Europeu. Mas a tecnologia (ao contrário da qualidade futebolística) melhorou bastante. Claro que fui apanhado de surpresa, porque não sabia que o Alice in Wonderland do Tim Burton era em 3D e que, por isso, teria de sentar-me numa sala de cinema ao lado de dezenas de outras pessoas de óculos escuros, como uma multidão de ressacados. Quanto ao filme, é uma espécie de Alice meets Senhor dos Anéis e Matrix. A Rainha de Copas cita Maquiavel: «É melhor ser-se temido do que amado», mas o final é bastante mais suave. Agora tenho de ir, estou muito atrasado, mesmo muito atrasado...

quarta-feira, 17 de março de 2010

É muito conveniente ter o Speaker’s Corner a quinze minutos do local de trabalho. Quando estamos mais aborrecidos podemos ir até lá insultar alguém. Mesmo não estando a ter um dia muito difícil, decidi ir experimentar na hora de almoço. Mas para lá chegar tive de contornar o Serpentine, o lago que atravessa Hyde Park. Estava um início de tarde muito agradável, com pessoas sentadas na relva e nos bancos, aves aquáticas a tentarem comer o almoço dos turistas e alguns barcos de recreio no meio da água. Quando cheguei ao outro lado estava demasiado bem disposto para querer dizer mal de alguma coisa. Também segui o conselho e não mergulhei da ponte.


domingo, 14 de março de 2010

O Gonçalo M. Tavares criou um bairro imaginário, de habitantes com com nomes de escritores e hábitos estranhos. Eu começo aos poucos a descobrir o meu. A cerca de trezentos metros do Sr. Mill viveu durante alguns anos o Sr. Pound. Como não foram contemporâneos, é difícil imaginá-los a encontrarem-se num café local e conversarem sobre filosofia ou poesia. Provavelmente discordariam sobre a maioria das coisas. A casa onde habitou Ezra Pound fica numa reentrância da Kensington Church Walk, uma via estreita por onde se pode escapar do movimento da rua central do bairro. Andando um pouco, chegamos ao pátio de uma igreja de estilo gótico (St. Mary Abbots), com lápides e plátanos espalhados de forma desordenada. O ruído dos automóveis quase não se ouve e sentimos que poderíamos estar numa pequena vila do interior. A ruela estende-se depois com uma sucessão de lojas minúsculas de ar antigo. Foi enquanto aqui vivia que Pound se tornou numa das principais figuras do modernismo, que mais tarde transportou consigo para Paris e Rapallo. Foi talvez também aqui que escreveu este poema:

The Garden


Like a skein of loose silk blown against a wall,
She walks by the railing of a path in Kensington Gardens,
And she is dying piece-meal
To a sort of emotional anæmia.

And round about there is a rabble
Of the filthy, sturdy, unkillable infants of the very poor.
They shall inherit the earth.

In her is the end of breeding.
Her boredom is exquisite and excessive.
She would like some one to speak to her,
And is almost afraid that I
Will commit that indiscretion.

segunda-feira, 8 de março de 2010

Após um interregno de mais de vinte anos, passei um dia inteiro a brincar com carros de bombeiros, rebocadores, betoneiras e outros veículos de quatro rodas em miniatura. E o D., a quem os novos brinquedos pertencem, estava quase tão entusiamado quanto eu. Não sei muito bem de que forma as teorias da educação evoluiram desde Locke, mas bastou apenas um ano para transformar uma tábua rasa num miúdo. Curioso como todos os outros, sempre a tentar abrir portas, caixas e frascos, a lançar o caos sobre os livros das estantes mais baixas e a gatinhar pela casa com um carrinho numa mão. John Stuart Mill aprendeu Grego e Latim muito novo, eu prefiro que ele aprenda a enfiar berlindes em covinhas escavadas no chão.

terça-feira, 2 de março de 2010

Nunca fui partidário da teoria de que a natureza humana é imutável. Mas senti um arrepio na espinha ao ler as páginas iniciais do Satyricon de Petrónio. O livro foi escrito provavelmente no século I e no seu início Petrónio descreve como a juventude do seu tempo está perdida, tudo por culpa do sistema educativo e dos pais, que não exercem suficiente disciplina. Depois afirma que já não se faz arte (teatro, poesia e pintura) como antigamente (Sófocles, Eurípedes, Homero, etc). Ainda não acabei o livro e não ficarei muito surpreendido se, entre a descrição de uma ou outra orgia, venha a encontrar afrase: O que isto (Roma) precisava era de um Nero em cada esquina.