sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010
Este livro que tenho agora na mão tem uma dedicatória de 1998 e foi-me oferecido por dois amigos. Há muito que eles deixaram de namorar e vivem mesmo em países diferentes. O livro, esse, já mudou pelo menos três vezes de casa, sempre a entrar e sair de caixotes sem nunca ser lido. Achei que tinha chegado a altura certa para o retirar da estante. É de Bruce Chatwin e chama-se O que Faço eu Aqui. A frase foi aparentemente retirada de Rimbaud, que a terá utilizado, em francês, numa viagem pela Etiópia. Mas a frase original terminava com um ponto de interrogação, o que lhe dava a forma de lamento. O título de Chatwin é apenas declarativo, de quem não espera, ou sequer quer, uma resposta.
terça-feira, 16 de fevereiro de 2010
Num dia de tempo verdadeiramente londrino, refugiámo-nos no interior da Tate Modern. Em quatro ou cinco salas, concentram-se obras representativas do melhor que se fez na primeira metade do século XX. Depois, mais acima, avança-se para o período a que os críticos de arte dão o nome de «Isto até o meu filho de três anos fazia». Percorrer um museu como a Tate em duas ou três horas é como tentar ver um filme em fast forward: apanhamos o enredo geral, mas perdemos os pormenores mais interessantes dos diálogos e das expressões faciais dos actores. A única solução é fazer pausa nos quadros que nos captam mais a atenção e depois continuar a andar pelas salas sem remorsos. Hoje parei algum tempo em frente de Metamorfose de Narciso de Salvador Dalí, onde uma figura ajoelhada junto a um lago dorme ou esconde simplesmente o próprio rosto que se transforma. Narciso permaneceu imóvel em frente ao lago enquanto nós saímos para a chuva, atravessámos a Millenium Bridge e fomos engolidos por uma estação de metro.
sábado, 13 de fevereiro de 2010
Descobri que vivo na circunscrição eleitoral onde, em todo o Reino Unido, o Partido Conservador teve a maior vantagem nas últimas eleições. Apesar de saber que mais de metade das pessoas do bairro são tories, não lhes levo a mal e continuo a sorrir para os meus vizinhos como antes. O conhecimento desse facto apenas reforçou a minha determinação em manter sempre as conversas de ocasião nos limites rígidos da meteorologia. Agora, no entanto, sempre com medo que ao comentar «What a lovely weather today» a pessoa ao meu lado no autocarro responda «Yes, perfect for fox hunting.»
quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010
A ascensão e a queda
O número e qualidade das revistas literárias publicadas no Reino Unido torna possível escrever-se (e, consequentemente, ler-se) sobre livros de todas as áreas. E com muita liberdade. Foi por isso sem surpresa que li, numa das publicações mais sérias e importantes, uma recensão ao livro Manhood: The Rise and Fall of the Penis, da qual transcrevo o primeiro parágrafo:
This was a stiff assignment: three hundred pages of information, lore, reflection and clinical data written up by a Dutch urologist in a quirky style that veers between flaccid exposition and penetrating analysis.
Aditamento
Em Tristes Trópicos, Claude Lévi-Strauss escreve sobre uma tribo, os Nambikwara, cujos membros não usam nomes próprios, pelo menos em frente a estranhos. Lévi-Strauss conta que começou a conhecer o nome de alguns deles pelas crianças que, como brincadeira ou para se vingarem umas das outras, lhe vinham sussurrar segredos (nomes) junto às orelhas. Aos poucos, deixou de ser estrangeiro.
segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010
Recollections of a wild radish*
Li os principais romances de José Saramago, mas nunca folheei sequer os diários. Fui por isso surpreendido ao ler uma recensão da autobiografia da infância do escritor na Literary Review, que começava com a história do registo de nascimento. Aparentemente, o funcionário estava bêbado e acrescentou ao apelido (Sousa) a alcunha pela qual a família era conhecida (Saramago). O caso não deve ser único ou, até, o mais embaraçoso. No mesmo texto, que consegui encontrar na internet, Saramago fala da sorte de a sua família não ter por alcunha, como outras da Azinhaga do Ribatejo, Pichatada, Curroto e Caralhana. Acredito que nunca teria recebido o Nobel. Eu, que sou urbano-depressivo, mas tenho uma aldeia, onde nunca vivi e sempre passei os verões, tenho um problema idêntico. Lá, pelo menos para as pessoas mais velhas, o meu apelido é Carvalheira, por a casa de família ficar numa encruzilhada de carvalhos centenários, dos quais restam ainda dois. Como no Tabacaria, de Álvaro de Campos, qualquer dia desaparecem os carvalhos e depois a alcunha de família e a língua em que era dita. Até lá, seremos os carvalheiras. Na verdade, fora dos bilhetes de identidade, existem poucos sousas, silvas, rodrigues, barrosos, gonçalves, martins, alves, cunhas. Quase todos são conhecidos por um nome diferente, como um código secreto que se aprende ao crescer e é, por isso, impenetrável a estranhos.
*Título da recensão de Miranda France.
*Título da recensão de Miranda France.
sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010
The knights who say «Ni»
A experiência de estar numa sala de cinema escura, anónimo entre estranhos, é insubstituível. Mas por vezes temos de contentar-nos com prazeres menores e, por isso, inscrevi-me no Lovefilm. Não sei se existe em outros países, mas é um sistema de aluguer de filmes que combina a Internet e os correios de sua majestade. Pagamos uma quantia fixa por mês, escolhemos uma lista de filmes no site e os dvds chegam-nos por correio passado pouco tempo. Podemos levar o tempo que quisermos a vê-los e, depois, fechamos o envelope de resposta paga e colocamo-lo em qualquer marco do correio. Passados alguns dias, recebemos os filmes seguintes da nossa lista. Para além de tudo o mais, a vantagem é que tem sessenta e cinco mil filmes e séries para escolha. É possível encontrar filmes de todas as décadas e categorias. A nossa lista tem coisas como As Tears Go By (Wong Kar-Wai), Broken Embraces (Almodóvar), Revolutionary Road (Sam Mendes) e Paris Nous Appartient (Jacques Rivette). Ontem à noite vimos The Holy Grail, dos Monty Python. Já conhecia partes do filme, dividido em sketchs (como o que dá o título a este post), mas nunca o tinha visto do princípio ao fim. O único problema foi ter perdido algum tempo, no menu do dvd, a tentar retirar as legendas em sueco que aparecem no genérico inicial. Só ao fim de dez minutos percebi, com alguma vergonha, que fazem parte do filme original.
quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010
Fui conhecer a Foyles, cinco pisos de livros em Charing Cross, uma das ruas menos bonitas e mais interessantes da cidade. Saí da boca do metro, passei pelas filas de balões vermelhos suspensos do início da Chinatown e, depois, por um sapato de mulher gigante a anunciar o musical Priscilla, a Rainha do Deserto. A livraria fica mais ao fundo da rua. Antes ainda entrei numa Pizza Hut, para os livros não me cairem no estômago vazio. Com tudo isto, tive apenas vinte minutos da hora de almoço para percorrer as estantes do terceiro andar. Andei por lá como um felino entre erva alta, à espera que as gazelas se aproximassem do lago para beber. Ao fim desse tempo, tive de parar de percorrer as lombadas e endireitei o pescoço, já com dois livros debaixo do braço, que comecei logo a digerir numa carruagem de metro.
segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010
Para a R., o A. e a I.
Por força das circunstâncias, a comunidade dos expatriados está mais predisposta a conhecer pessoas novas. Foi por isso que nos encontrámos, no passado fim-de-semana, sentados à mesa a almoçar e a conversar alegremente com uma portuguesa, um escocês, dois ou três búlgaros, uma austríaca e um inglês («and very proud of it.»), nenhum dos quais conhecíamos anteriormente. A única vaga ligação era uma amiga de uma amiga. Agora, espero, também nossa amiga. As crianças mais velhas subiam e desciam os degraus, saltavam em cima das almofadas e, as mais novas, simplesmente dormiam ou choravam no colo dos pais. Divertimo-nos. A nossa situação actual faz lembrar os tempos da faculdade, quando os estudantes de fora de Lisboa, com a liberdade de não possuirem ligações familiares a que voltar ao fim da noite, se reuniam nos grupos mais estranhos e interessantes. Nós esforçávamo-nos por acompanhar o ritmo e as actividades, mas inevitavelmente tínhamos de correr para apanhar o último comboio. Agora somos nós que vemos o comboio partir, ao longe, e continuamos a conversar.
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