quarta-feira, 16 de dezembro de 2009
segunda-feira, 14 de dezembro de 2009
Os náufragos têm de reconstruir rotinas antigas num espaço que só aos poucos vão começando a conhecer. Desde que cheguei a Londres, o cinema foi um dos principais problemas. A nossa casa fica a cerca de cento e cinquenta metros de um, mas pertence a uma cadeia de salas onde apenas de vez em quando é projectado um filme menos comercial. Por outro lado, os britânicos descontam as horas de sol a menos que há a esta latitude nos horários dos espectáculos. As últimas sessões começam por volta das 20h30, demasiado cedo para quem tem de ajudar a pôr os miúdos a dormir antes de sair de casa. Aproveitando a visita de familiares, que me substituíram na tarefa, fui explorar um cinema de Notting Hill, o Coronet.
Os cinemas independentes são iguais em toda a parte: pequenos, escuros, com cadeiras gastas e decoração antiquada. Enfim, perfeitos. Neste, em vez de pipocas, o público levou para o interior da sala copos de plástico com cerveja e outras bebidas alcoólicas, o que se justifica perfeitamente durante retrospectivas de cinema francês, mas parece desadequado em outras situações. Fui ver A Serious Man dos irmãos Cohen. Gostei do filme e de tudo o resto. A meio, uma pessoa começou a ressonar de forma sonora e, mais tarde, um balão que se tinha mantido no tecto da sala começou a pairar em frente ao ecrã e a interagir com o argumento. No final, apanhei o autocarro 328 com destino a World’s End, mas saí algumas paragens antes e por isso não posso contar-vos como acaba.
Os cinemas independentes são iguais em toda a parte: pequenos, escuros, com cadeiras gastas e decoração antiquada. Enfim, perfeitos. Neste, em vez de pipocas, o público levou para o interior da sala copos de plástico com cerveja e outras bebidas alcoólicas, o que se justifica perfeitamente durante retrospectivas de cinema francês, mas parece desadequado em outras situações. Fui ver A Serious Man dos irmãos Cohen. Gostei do filme e de tudo o resto. A meio, uma pessoa começou a ressonar de forma sonora e, mais tarde, um balão que se tinha mantido no tecto da sala começou a pairar em frente ao ecrã e a interagir com o argumento. No final, apanhei o autocarro 328 com destino a World’s End, mas saí algumas paragens antes e por isso não posso contar-vos como acaba.
terça-feira, 1 de dezembro de 2009
Os encontros com antigos colegas de faculdade são sempre ocasiões para verificar como um grupo de pessoas que conviveu de forma intensa durante um curto espaço de tempo se dispersou depois em todas as direcções. É provável que na altura tenhamos falado sobre planos para o futuro, no terraço, com o som da música a sair pelas portas abertas da sala F, mas a realidade ultrapassou essas ficções. O M. explora petróleo na Sibéria, o D. está na Dinamarca, a E. na Bélgica e o A. aqui, como eu. A maioria continua em Portugal, onde é difícil ler um jornal, ver televisão ou ouvir rádio, sem ler, ver ou ouvir alguém conhecido. Uns escrevem sobre automóveis, outros sobre futebol, política, economia, história e até romances. Alguns, poucos, entraram na política. Uns casaram uns com os outros. A maioria permanece anónima e feliz. Lembrei-me disto porque fui surpreendido, quando assisti há pouco pela internet à cerimónia de entrada em vigor do Tratado de Lisboa, ao reconhecer a Ana em cima do palco a cantar as músicas do Rodrigo Leão. Apesar de não ter pertencido ao meu grupo de amigos mais próximo, na faculdade, lembro-me das poucas vezes que na altura a ouvi cantar, para espanto e êxtase colectivos. Julgava que ela escrevia sobre música e afinal são outras pessoas que escrevem sobre ela.
domingo, 22 de novembro de 2009
Os relatos de náufragos são, em geral, histórias de homens desesperados em lugares paradisíacos. Robinson Crusoe naufragou no arquipélago Juan Fernández, mas tinha uma vida solitária. Os amotinados do Bounty fizeram-se naufragar na ilha de Pitcairn, no Pacífico Sul, mas acabaram por se matar uns aos outros. Os passageiros do Sea Venture naufragaram na costa das Bermudas, em 1609, mas trocaram a ilha pelo continente logo que conseguiram construir outro navio. Nós não estamos desesperados, nem a nossa ilha é muito tropical. Com a aproximação da época, os parques têm feiras de Natal, com carrosséis luminosos, ringues de patinagem no gelo e barracas de comida a fumegar. Escurece muito cedo, mas isso permite-nos desfrutar durante mais horas das iluminações de Natal, que sobem pelos troncos das árvores como trepadeiras. Está frio e chove, mas não dentro dos museus. Enfim, vamos incendiando simbolicamente os restos do barco que nos trouxe, para nos esquecermos dos planos de regresso. Com bastante sucesso, este fim-de-semana.
terça-feira, 17 de novembro de 2009
segunda-feira, 16 de novembro de 2009
Os ingleses estão a esforçar-se para que eu não tenha saudades de casa. Não há jornal ou ecrã de televisão em que não apareçam as seis letras da palavra Lisbon. E nem o facto de, em geral, a utilizarem como um insulto - por se referir ao Tratado -, me deixa menos satisfeito. Os jornais conservadores usam o nome da nossa cidade como se fosse o de uma batalha perdida da Guerra dos Cem Anos. Para muitos deles, a Europa só começa do outro lado do Canal e olham com desconfiança tudo o que o tente atravessar, seja navios espanhóis ou regulamentos de Bruxelas. Nos últimos tempos, por exemplo, esgotaram-se as lâmpadas incandescentes nas lojas, por se ter sabido que a legislação europeia vai proibir que sejam comercializadas. A ideia de que a medida pode ser boa, por reduzir o desperdício energético, é afastada logo à partida pela proveniência. Tenho a certeza de que muitos britânicos não se importariam de passar as próximas semanas a acender milhares de lâmpadas de 60 watts ao longo da costa, para que em Calais percebessem o que pensam das ideias luminosas da Comissão Europeia.
(Dito isto, diverte-me bastante observar o espírito independente dos britânicos.)
(Dito isto, diverte-me bastante observar o espírito independente dos britânicos.)
O vento outonal soprava sobre a Inglaterra. Arrancava as folhas das árvores e elas caiam, esvoaçantes, sarapintadas de verde e amarelo, ou deixava-as pairar, flutuar em curvas largas, antes de aterrarem. Irrompendo em rajadas das esquinas, nas cidades, o vento arrancava um chapéu, aqui, e elevava, alto, um véu por cima da cabeça de uma mulher.
Virginia Woolf, Os Anos
Virginia Woolf, Os Anos
domingo, 15 de novembro de 2009
93.5 FM
A maioria dos canais de rádio e de televisão britânicos são tão maus, ou piores, do que os portugueses. Ainda não consegui encontrar uma rádio com música tão boa como a da Radar, apesar de grande parte das correntes alternativas e independentes ter tido origem neste lado do Canal. Ainda assim, encontram-se alguns casos interessantes, como o da BBC Radio 4, que leva o conceito de serviço público bastante a sério. Para além de boa informação, tem programas de debate com historiadores e filósofos que só estamos acostumados a ler à distância. Na semana passada, um grupo de historiadores e teólogos passou cerca de uma hora a debater o Cerco de Münster, de 1535, que pôs fim ao governo da cidade por uma seita anabaptista. E isto é só o começo. Ao fim da tarde, há sempre uma peça de teatro radiofónica e, ao início da noite, a leitura sequencial de partes de um livro. Hoje, pouco depois da hora de almoço, passou um programa de jardinagem, com telefonemas de ouvintes a pedirem conselhos sobre, por exemplo, a melhor época para plantarem determinado tipo de planta. Fiquei a saber que não vale a pena transplantar plantas de framboesa com mais de oito anos, porque são geralmente afectadas por um fungo a partir dessa idade. É como se o tempo tivesse recuado umas décadas e tivesse de ouvir a voz do Eng. Sousa Veloso entre serviços noticiosos da TSF ou da RDP. Neste momento, não sei a programação da Radio 4. Enquanto escrevo, ouço Devendra Banhart, na emissão online da Radar.
sábado, 14 de novembro de 2009
Está frio e muito vento. Regressámos a casa como no final de uma batalha, com o cabelo revolto e algumas varetas de guarda-chuva partidas. Agora, que a luz começa a desaparecer, lanchamos, ouvimos The National (Aligator) e observamos, pelas janelas da sala, as árvores a prosseguirem o combate que abandonámos a meio.
domingo, 8 de novembro de 2009
A nice Guy
Apesar de parecer contraditório, os ingleses comemoram uma explosão falhada, há mais de quatrocentos anos, com fogo-de-artifício anual. Um grupo de conspiradores católicos planeou fazer explodir o edifício do Parlamento, no dia da sua abertura anual, em 5 de Novembro de 1605, com o rei e parte importante da nobreza no interior. A elite política de um dos maiores reinos da Europa teria sido decapitada com um só golpe. Os conspiradores, liderados por Guy Fawkes, foram enchendo de pólvora uma cave por baixo das Houses of Parliament, ao longo de semanas, e o golpe só foi descoberto algumas horas antes do início marcado para a detonação.
Nos últimos dias, temos comprovado que a tradição se mantém. Os estrondos e as luzes vão-se sucedendo, de forma descentralizada e interminente, por várias zonas de Londres. Pode comprar-se fogo-de-artifício no supermercado local. No nosso, o equivalente ao Pingo Doce, está na prateleira a seguir à do pão, o que não deixa de ser conveniente. Pode levar-se uma baguete para ir comendo enquanto se lança o engenho num dos parques, numa destas noites gélidas de início de Novembro. Há pouco vimos da janela da nossa casa mais um foguete a ser lançado do meio do campo de jogos de Holland Park. As luzes iluminaram por segundos os plátanos já quase sem folhas e depois fez-se noite outra vez.
segunda-feira, 26 de outubro de 2009
Nursery rhymes
As nursery rhymes são canções repetitivas que as crianças inglesas aprendem na escola, para as ajudar a desenvolver a linguagem e a entoação característica das frases em inglês. A L. já canta algumas, mesmo sem conhecer o significado da maioria das palavras. Sabe cantar coisas como Twinkle twinkle little star, how I wonder what you are e Mary Mary quite contrary, how does your garden grow. Como acredito que a educação começa em casa, já sabe também o início de There's a light that never goes out dos Smiths e de Wild is the wind do David Bowie. Estamos agora a trabalhar no refrão do Love will tear us apart dos Joy Division.
Hoje de manhã, no 9 para Aldwych, um senhor de fato lia o equivalente inglês ao Jornal do Sexo, de forma compenetrada e séria, como se estivesse a ler o Times ou o Guardian. Só a sucessão de raparigas em tronco nú, página sim, página não, causava alguma estranheza – por estarmos quase em Novembro e já lhes dever apetecer uma camisolinha.
Aproveitámos a manhã de sábado para explorar melhor o nosso bairro. John Stuart Mill, uma das minhas maiores referências intelectuais, viveu a cerca de quinhentos metros de nossa casa, na Kensington Square. Talvez não tenha sido o mais brilhante dos filósofos britânicos, mas tentou dar resposta a algumas das perguntas mais importantes sobre a vida em sociedade, numa síntese entre especulação filosófica e intervenção cívica. A casa não é das mais bonitas da área (nem sei se é a original), mas fica numa praça recolhida, com um jardim no meio. Stuart Mill acreditava no desenvolvimento pessoal livre e diversificado, na tolerância e na originalidade. Tenho a certeza de que teria sido um bom vizinho se, para além de uma coincidência no espaço, tivéssemos vivido na mesma época. Não me parece que fosse pessoa para chamar a polícia para nos obrigar a pôr a música mais baixo ou para nos receber mal se um dia lhe batêssemos à porta para pedir uma chávena de açúcar.
quarta-feira, 21 de outubro de 2009
Numa rápida pesquisa na Internet, para poder explicar ao médico inglês a minha condição, encontrei esta frase: «A rosácea está muito relacionada com o estado psicológico do paciente e piora com a ingestão de álcool, bebidas quentes, frio e vento.» Os itálicos, como se costuma dizer, são meus. É provável que tenha escolhido para viver o pior ambiente do mundo para o controlo de uma doença crónica, mas felizmente nada grave. Não me consigo lembrar de outro lugar em que a combinação de ingestão de álcool (gin e cerveja), bebidas quentes (chá e cerveja), frio e vento seja mais forte do que em Inglaterra. O estado psicológico, pelo menos, ainda está razoável.
domingo, 18 de outubro de 2009
sexta-feira, 16 de outubro de 2009
Todos os dias apanho um double-decker bus vermelho para o trabalho. A viagem demora um quarto de hora, por uma das avenidas que limitam o parque (Kensington Gardens + Hyde Park). Um dos aspectos positivos de estar num país estrangeiro é poder, como hoje, pegar* n'Os Três Seios de Novélia, de Manuel da Silva Ramos – Prémio de Novelística Almeida Garrett, 1968, comprado por um euro numa feira do livro – sem receio de ter de aguentar os sorrisos de outros passageiros. De um lado do autocarro tenho uma fila quase ininterrupta de edifícios, do outro o parque, com pessoas a fazerem jogging matinal entre folhas secas de carvalho ou de fato, a caminho do trabalho. Em frente, a tapar a estrada que se estende até Hyde Park Corner, tenho este parágrafo:
E começo-te a contar uma história verdadeira que fala dum homem que entrou numa biblioteca para ler um livro banal e só de lá saiu cinco anos mais tarde depois de ter lido todos os livros. A sua cama era um rectângulo de 1,85 por 1,25 formado pelos seguintes livros: Werther de Goethe, o manuscrito original em papel de bíblia das Confissões de Rousseau, um ensaio de um filósofo persa sobre as trovoadas, uma tradução chinesa dos Lusíadas, um livro de culinária duma cortesã romana sobre as mil e uma maneiras de preparar arroz, Madame Bovary (dormia com ela todas as noites) de Flaubert e Uns Subsídios para uma Monografia sobre o Cair da Chuva, de um célebre navegador espanhol do século XVI, serviam-lhe de cabeceira. Comia na própria biblioteca e aí fazia as necessidades por detrás duma prateleira onde estavam guardados os clássicos franceses.
E começo-te a contar uma história verdadeira que fala dum homem que entrou numa biblioteca para ler um livro banal e só de lá saiu cinco anos mais tarde depois de ter lido todos os livros. A sua cama era um rectângulo de 1,85 por 1,25 formado pelos seguintes livros: Werther de Goethe, o manuscrito original em papel de bíblia das Confissões de Rousseau, um ensaio de um filósofo persa sobre as trovoadas, uma tradução chinesa dos Lusíadas, um livro de culinária duma cortesã romana sobre as mil e uma maneiras de preparar arroz, Madame Bovary (dormia com ela todas as noites) de Flaubert e Uns Subsídios para uma Monografia sobre o Cair da Chuva, de um célebre navegador espanhol do século XVI, serviam-lhe de cabeceira. Comia na própria biblioteca e aí fazia as necessidades por detrás duma prateleira onde estavam guardados os clássicos franceses.
* Num sentido metafórico, por falta de mais uma mão.
terça-feira, 13 de outubro de 2009
O processo de mudança de casa só pode ser declarado oficialmente encerrado quando os livros, depois de um convívio aleatório nas estantes, voltam a ser colocados em ordem alfabética. A Virginia Woolf já tinha saudades da proximidade com Oscar Wilde, o Córtazar está aconchegado à Hélia Correia e o Lobo Antunes bem separado do Saramago.
segunda-feira, 12 de outubro de 2009
Adaptador
Uma mudança para o Reino Unido não é acompanhada por um grande choque cultural. A maioria de nós passou a infância a ler livros d’Os Cinco e a adolescência a ouvir músicas dos Happy Mondays, The Smiths e The Cure. É provável que nunca tenhamos comido um pequeno-almoço inglês, mas não ficamos espantados por ver um prato com ovos estrelados e feijões com molho doce antes das dez da manhã. É nos pormenores que os britânicos nos apanham desprevenidos. Quando tentamos ligar uma ficha à corrente, parece que a tomada, com três pinos, nos grita: «–This is not bloody France». Temos também de raciocinar rápido e, quando uma placa nos diz que faltam três milhas para a próxima saída da auto-estrada, calcular se é cedo ou tarde para começar a desacelerar. Como trouxe comigo o meu automóvel com volante do lado certo, quando chego a um parque de estacionamento, tenho de retirar o cinto, atravessar o lugar do morto com o braço e esticar-me ao máximo para conseguir retirar o ticket com a ponta do pai-de-todos e do fura-bolos. Quando o lugar do passageiro está ocupado a situação é mais embaraçosa ou agradável, dependendo da companhia.
quarta-feira, 7 de outubro de 2009
Mary Wollstonecraft, uma das figuras mais importantes do movimento feminista, tentou suicidar-se duas vezes por causa de um homem. Da segunda vez, vestiu um dos seus vestidos de noite, andou durante algum tempo com ele à chuva, pelas ruas de Londres, para o tornar mais pesado, e depois atirou-se às águas do Tamisa. Felizmente, um barqueiro conseguiu salvá-la e ainda viveu mais alguns anos, creio que felizes.
De um ponto de vista técnico, o Tamisa é perfeito para tentativas de suicídio: tem muitas pontes, com muros baixos, águas escuras e uma cidade que, quando chove, é ligeiramente deprimente. (Deve ser raro alguém tentar suicidar-se no Tejo, que é demasiado largo, ou no Sena, que é demasiado bonito.) Por outro lado, o Tamisa teve barqueiros, durante séculos, e agora tem provavelmente uma polícia fluvial, com lanchas rápidas e polícias com coletes-de-salvação montados em potentes motas de água. Quem se atira – não que eu esteja a pensar fazê-lo, mesmo que chova três meses sem parar – sabe que tem boas probabilidades de sobrevivência e, de uma forma geral, preferirá não molhar o fato ou o vestido, que tanto trabalho dão a secar neste país. É, no fundo, o Eros e Thanatos de Freud aplicado ao Tamisa, com homens e mulheres à chuva, num equilíbrio precário entre as forças do amor e da extinção.
De um ponto de vista técnico, o Tamisa é perfeito para tentativas de suicídio: tem muitas pontes, com muros baixos, águas escuras e uma cidade que, quando chove, é ligeiramente deprimente. (Deve ser raro alguém tentar suicidar-se no Tejo, que é demasiado largo, ou no Sena, que é demasiado bonito.) Por outro lado, o Tamisa teve barqueiros, durante séculos, e agora tem provavelmente uma polícia fluvial, com lanchas rápidas e polícias com coletes-de-salvação montados em potentes motas de água. Quem se atira – não que eu esteja a pensar fazê-lo, mesmo que chova três meses sem parar – sabe que tem boas probabilidades de sobrevivência e, de uma forma geral, preferirá não molhar o fato ou o vestido, que tanto trabalho dão a secar neste país. É, no fundo, o Eros e Thanatos de Freud aplicado ao Tamisa, com homens e mulheres à chuva, num equilíbrio precário entre as forças do amor e da extinção.
domingo, 4 de outubro de 2009
Da Vida das Marionetas
Portobello Road, ao sábado, é uma mistura entre Bairro Alto, Feira da Ladra e Feira de Espinho. Na rua que serpenteia por Notting Hill podemos comprar uniformes militares em segunda mão, roupa alternativa, velharias, música, crepes com chocolate, maçanetas de porta, fruta, legumes, letreiros, gravuras, etc. Existe também alguma animação de rua, como as duas raparigas acima, que manejavam as duas marionetas com um ar impassível. Para além do movimento ligeiro das mãos, apenas batiam um dos pés de forma ritmada, ao som da música, como se fossem marionetas que manejam marionetas, comandadas por um dono invisível.
sexta-feira, 2 de outubro de 2009
Invasões bárbaras
Assim como nos dizemos Lusitanos e provavelmente somos descendentes de um qualquer outro povo que os combateu, expulsou ou sucedeu, também é difícil definir os londrinos. Há muito que os ingleses abandonaram a cidade. No nosso prédio, por exemplo, só existe uma família inglesa. Depois, para além de nós, portugueses, há um belga casado com uma holandesa e seus três filhos, uma mexicana casada com um alemão, uma indiana e um grego. O barbeiro a que fui cortar o cabelo está em Londres há quarenta anos, mas todos os anos passa férias na sua Puglia (Itália) natal (o calcanhar da bota, diz, apontando para o seu próprio calcanhar), a educadora da L. é eslovaca (Aga, de Agnieska), nos parques as crianças falam francês, italiano e russo e muitos dos empregados do comércio são portugueses. Só os motoristas de táxi (sobre os quais espero falar-vos mais tarde) são, na sua maioria, britânicos. A cidade foi internacionalizada. Poderia ter dito, tomada pelos bárbaros, não fosse a expressão ser pejorativa e eu ser um deles. Mas, ao contrário de Babel, onde a multiplicidade das línguas gerou a discórdia, todos acabam por encontrar forma de se entender e de ir construindo a Torre, a que podemos chamar de Londres.
quinta-feira, 1 de outubro de 2009
Há quem julgue que o que descreve melhor o carácter do povo britânico é o hábito de tomar chá a horas certas e de beber álcool a horas incertas (e frequentes). No entanto, a característica psicológica que verdadeiramente o distingue de outros povos é a compulsão para alcatifar. Afirma-se com frequência que o universo tem horror ao vazio. Os Britânicos tentam preenchê-lo com alcatifa. Já a vi por todo o lado e em todas as divisões. Só não vi tectos alcatifados, embora acredite que mais por dificuldades técnicas do que por gosto pessoal. Na nossa busca por apartamentos para alugar chegámos a encontrar alguns com três casas-de-banho, todas devidamente alcatifadas, não vá alguém lembrar-se de usá-las durante a noite e esquecer-se de calçar os chinelos.
Todos os momentos livres têm sido passados nos parques. Uma das primeiras coisas que podemos reparar é o hábito que os londrinos têm de dedicar os bancos de jardim à memória de alguém. Muitos dos bancos, de madeira castanha, têm dedicatórias gravadas: In the memory of x who loved this park, To y who used to seat in this bench every afternoon ou simplesmente um nome seguido de uma data de nascimento e morte. Podia ser mórbido, mas é apenas apaziguador. Trazem o nome das pessoas, de forma discreta, para os lugares de que mais gostavam.
Mr. Dalloway
O título do blog é, como é óbvio, retirado do livro de Gabriel García Márquez, que na realidade tem o título mais longo e mais trágico de: Relato de um Náufrago que esteve dez dias à deriva numa balsa sem comer nem beber, que foi proclamado herói da pátria, beijado pelas rainhas de beleza, e ficou rico com a publicidade, e depois foi malquisto pelo governo e esquecido para sempre.
O anterior tinha como patrono Jorge Luis Borges, com ênfase no tema dos espelhos e da bibliomania. A inspiração central deste é Virginia Woolf e, em particular, Mrs. Dalloway. O tema do livro é semelhante ao meu: o relato de um passeio por Londres, com descrições pormenorizadas das ruas e do carácter dos londrinos, sem grande enredo, mas muitas pequenas histórias. Serei, por isso, Mr. Dalloway. Não Richard Dalloway, marido, mas uma versão masculina (muito masculina, mesmo) de Clarissa Dalloway, a personagem central do romance.
Mrs. Dalloway, tal como Ulysses, de James Joyce, passa-se num só dia. E é essa a grande diferença. O meu relato, se tudo correr bem, vai durar alguns anos. E começa agora.
O anterior tinha como patrono Jorge Luis Borges, com ênfase no tema dos espelhos e da bibliomania. A inspiração central deste é Virginia Woolf e, em particular, Mrs. Dalloway. O tema do livro é semelhante ao meu: o relato de um passeio por Londres, com descrições pormenorizadas das ruas e do carácter dos londrinos, sem grande enredo, mas muitas pequenas histórias. Serei, por isso, Mr. Dalloway. Não Richard Dalloway, marido, mas uma versão masculina (muito masculina, mesmo) de Clarissa Dalloway, a personagem central do romance.
Mrs. Dalloway, tal como Ulysses, de James Joyce, passa-se num só dia. E é essa a grande diferença. O meu relato, se tudo correr bem, vai durar alguns anos. E começa agora.
Passaram quarenta e seis dias desde que naufraguei nesta ilha. Como em todos os naufrágios, o momento inicial foi de alívio, por estar finalmente com os pés em terra seca, e o segundo de desespero, por não conseguir adivinhar modos de sobrevivência numa terra estranha. Fomos quatro, os que naufragámos. Ainda ficámos algum tempo na praia, a ver as dez malas que trouxemos connosco a avançarem e a recuarem na linha de rebentação. Depois saímos do areal. Esta é a história do que se passou a seguir.
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